
‘Estou no inferno. Rua Augusta, 501, Consolação, São Paulo. É aqui que passo as minhas noites depois de “trabalhar”. Do canto do balcão, tomo minha cachaça e reflito sobre a vida, assistindo bandas independentes de nomes pretensiosos e inúteis, como os Dead Rats ou os Surfmotherfuckers.
Meu nome também é despretensioso e inútil. Chamo-me Deus. Escolhi depois, com bases nos fatos.
Se eu não achasse arte uma bobagem conceitual, poderia me considerar simplesmente um artista. No entanto, estou acima disso. Sou um criador. De vida. E isso não é metáfora: minha especialidade é fazer filhos.
Assim como Deus, sou contra camisinha e aborto. Odeio chupar bala com papel. E acho aborto uma injustiça com a mulher. Todos sabem que a mulher é biologicamente concebida para engravidar. A cada mês que não engravida, seu corpo manda uma mensagem de tragédia: a TPM. Depois, chora sangue.
Minha santa vocação não me permite deixar as mulheres sofrerem. Por isso as engravido. Hoje, engravidei mais uma. Chama-se Maria e está noiva. Prefiro mulheres compromissadas porque meus filhos precisarão de pais que cuidem deles.
Maria, apesar de não ser virgem, é divina. Conheci-a na feirinha da Praça Benedito Calixto, acompanhada do noivo. Segui-os por uns dias e adquiri conhecimento suficiente para me introduzir em sua rotina e seduzi-la.
Típica mocinha da Vila Madalena, Maria é do tipo romântica. Adora (como todas as românticas) encadear coincidências casuais e torná-las indícios de uma força maior, um destino do qual ela não pode escapar. E, para alguém chamado Deus, não há melhor aliado que o Destino.
Aqui cabe dizer que, apesar do que possa parecer, não sou infalível. Sou um Deus que erra (afinal, diferentemente do deus bíblico, eu existo). Entre perfeição e erro, fico com o segundo. Gosto de arriscar. E, com mulheres, quem arrisca, petisca. Se não petisca, pelo menos aprende alguma coisa. É esse o princípio fundador da Escola da Vida.
Além disso, não me interessa o amor platônico porque não farei meu filho com a ajuda de nenhum Espírito Santo. Meu negócio é com a carne e com os prazeres que só ela proporciona.
Apesar de minha experiência com alguns atalhos, a conquista jamais pode se tornar artificial. Deixo-me envolver de verdade e me apaixono profundamente por todas as mulheres com quem me relaciono. Afinal, serão as mães de meus filhos. E, com Maria, não foi diferente.
No entanto, como já disse, agora estou no Inferno. De corpo e alma. Tento exorcizar a presença de Maria do meu coração. Mesmo apaixonado, não posso me dar ao luxo de me prender a uma só mulher. Um homem, cujo objetivo é a geração de vidas, tem que fazer uso de sua biologia e espalhar sua semente com a maior freqüência possível. Só que, por mais que essa seja uma escolha consciente, ela não é nada fácil.
Passei hoje minha última tarde de amor com Maria. Tenho certeza de que ela engravidou. Depois, ficamos ouvindo, abraçados em posição fetal, o melado som de Marisa Monte. Foi a melhor forma de me despedir sem dizer adeus.
Talvez por isso agora eu esteja aqui ouvindo essas bandas podres e barulhentas, virando essa amarga cachaça. Esgotou-se minha tolerância para a doçura. De doce, já basta a vida. E, aqui no Inferno, posso dizer: Há Deus. Eu.'
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